O fim anunciado da grande parte<br>da produção nacional<br>de leite/lacticínios
À data da adesão – 1986 – de Portugal à então CEE e da nossa agricultura à PAC (Política Agrícola Comum), a chamada OCM, Organização Comum de Mercado do Leite (e Lacticínios), na Europa, começava a acumular problemas com os excedentes – quantidades produzidas pelos países maiores produtores/exportadores que não obtinham comercialização e eram compradas/armazenadas (leite em pó, manteigas) pela CEE que, assim, gastava rios de dinheiro a comprar tais excedentes e a armazená-los.
Defender a soberania alimentar nacional passa, incontornavelmente, pela defesa da produção leiteira
LUSA
O «Mercado Único» (liberalização) – fim da protecção aduaneira – para o sector só veio a ser introduzido no início dos anos 90 e para Portugal a «quota leiteira» foi formalmente fixada em 1991. Era então um pouco inferior a um milhão e 800 mil toneladas. Nessa época eram mais de 80 mil os produtores nacionais (Continente e Açores) embora o sistema das entregas de leite para comercializar não fosse muito rigoroso e as estatísticas mais fiáveis só tivessem surgido em 93/94. O governo de então tomou uma medida que também contribuiu para acelerar a ruína de milhares de produtores e para complicar a transformação/comercialização do leite e dos lacticínios nacionais e que foi a antecipação, para Portugal, do «Mercado Único» do leite/lacticínios em dois anos. Antecipou de 1995 para 1993. Em troca dessa antecipação, Portugal terá recebido 100 milhões de contos «para a produção» – como na altura foi propagandeado. Porém, essa verba nunca chegou ao bolso dos produtores.
Em Portugal quase sempre se produziu abaixo da quota nacional. Acima da quota, só se produziu em 99/2000, em 2002/03 e em 2005/06, o que originou «multas» ao nosso País e aos produtores abrangidos. Entretanto, o governo português «conseguiu» fazer contabilizar – perante a UE – acima da quota, uma «franquia» leiteira dos Açores a pretexto da ultra-periferia açoreana e dos programas específicos. Daí que a direita diga que a quota leiteira teria sido a única a ser razoavelmente negociada com a CEE, iludindo que, desde cedo, aquela deixou de permitir uma margem de progressão significativa à produção nacional sobretudo se ela fosse devidamente apoiada e se a quota nacional fosse indexada – como o movimento associativo unitário dos agricultores reclamou – ao consumo nacional de leite/lacticínios «per capita», em Portugal sempre mais baixo do que a média da CEE (ou da UE).
Além do mais – já com o objectivo de concentrar a produção – logo em 1992 houve um primeiro «resgate» (compra pela UE e pelo Estado/governo) de parte da quota leiteira nacional (e também houve «resgates» noutros países), em que alguns milhares de produtores – claro que principalmente os pequenos – foram incentivados a «vender» a respectiva quota leiteira e a deixar de produzir. E outros «resgates» do género houve (pelo menos mais quatro) em anos seguintes.
Na verdade, o que esteve na origem destas decisões foi a consolidação na União Europeia, sob o impulso dos países do Norte, grandes produtores e exportadores de leite (Dinamarca, Holanda, Irlanda, Reino Unido e outros), do objectivo de revisão da Organização Comum do Mercado do Leite com a liquidação do sistema das quotas leiteiras.
Objectivo a que nenhum governo português se opôs radical e frontalmente, inclusive invocando os interesses vitais do País.
Caminho feito, como sempre, de pequenos passos, «facilitando» as cedências e as justificações de governos como os portugueses, e iniciado em 1999, no âmbito da reforma da PAC (Agenda 2000), que teve o acordo do então governo PS/Guterres (era ministro da Agricultura Capoulas Santos, e tinha como assessor em Bruxelas o depois ministro Jaime Silva), onde se estabeleceu o fim das quotas para 2008.
Decisão que foi alterada em 2003, adiando a sentença de morte para 2015. Caminho que foi reiniciado em 2008 (Conselho de Ministros da Agricultura de 17 de Março), igualmente com o acordo do governo PS (Alemanha e Áustria votaram contra e a França absteve-se), aceitando um aumento de dois por cento geral e igual para todos os estados-membros, o que significou produzir mais 2,8 milhões de litros de leite na Europa na campanha 2008 (1Abril)/2009 (31Março).
A decisão final seria a da liquidação das quotas a prestações, através de um aumento anual de um por cento para todos os países (para a Itália o aumento foi numa prestação única de cinco por cento), «a fim de preparar o seu desaparecimento, previsto para 2015».
Forma de acabar com as quotas assegurando uma dita «aterragem suave», porque se faria sem «dor» dos produtores, que se iriam «habituando», preparando a sua liquidação final por inutilidade em 2015!
O que aconteceu foi que as últimas medidas de aumentos de quotas «legalizaram» os excedentes, que alguns desses países estavam a produzir para lá das quotas, e que agora aparecem no mercado europeu a preços de saldo.
O resultado da liquidação das quotas leiteiras será o fim da produção leiteira, não apenas como vem acontecendo em zonas e explorações ditas marginais, não eficientes, mas mesmo nas bacias leiteiras do Entre Douro e Minho e Beira Litoral, que nunca conseguirão concorrer com as áreas leiteiras do Norte da Europa, ou pior, no mercado mundial, com as explorações de milhares de vacas dos EUA, Nova Zelândia ou Austrália.
Por características específicas do nosso País, já à data de 1986, eram as Cooperativas Leiteiras que recolhiam a quase totalidade dos leite produzido pelos seus sócios. À época, havia a Junta Nacional dos Produtos Pecuários que garantia preços e escoamento. Os produtores leiteiros, por regra, recebiam à quinzena. Tinham assim uma espécie de salário certo. A seguir deixaram de ter. Hoje, nem sequer preços indicativos há.
O sector leiteiro já era, e ainda hoje é, o sector mais organizado do ponto de vista da produção que através das Cooperativas, das (duas) Uniões das Cooperativas Leiteiras e da empresa Lactogal (formada no início dos anos 90 e propriedade das cooperativas), recolhe, transforma e comercializa de 80 por cento a 85 por cento da produção leiteira nacional. E todavia está cheia de problemas com o escoamento.
Com o correr do tempo, e em consequência da política de direita dos sucessivos governos, muitos mais milhares deixaram de poder produzir (sem terem beneficiado de qualquer «resgate»…). Se em 1991 eram 80 mil os produtores nacionais, em 2015 são pouco mais de seis mil, centenas dos quais grandes produtores! E a baixar diariamente... E já em 2014 se produziu cerca de 200 mil toneladas abaixo da quota ( dois milhões e 80 mil toneladas), a qual tinha entretanto aumentado em resultado do chamado «exame de saúde da PAC» (2009) e dos aumentos gerais das quotas dos estados-membro – cinco por cento até 2015 – então decididos no âmbito dessa demagogia cínica chamada de «aterragem suave» do sector do leite/lacticínios já em função do fim das quotas fixado para 31 de Março de 2015 e das ameaças dos «desastres» que, já se sabia, vários países iriam sofrer. Todavia, Portugal obteve uma espécie de «compensação» para o sector, desta vez no valor de 50 milhões de euros. Também esta «compensação» não veio para o bolso dos produtores. Também esta terá ficado no sector cooperativo ou dos seus «derivados».
Em 2013 o aumento da produção a nível da UE – aumento dos países maiores produtores – por essa via, equivalia já à produção/quota anuais de Espanha (5,3 milhões de toneladas). Simultaneamente, no tal «exame de saúde», foram impostas grandes baixas nos preços da «intervenção» (compra institucional) da manteiga (-25 por cento) e do leite em pó (-15 por cento) de entre outras medidas controversas. O que contribui, em conjunto com a falta de escoamento – as nossas importações, em quantidades e em valor, são quase o dobro das exportações) e a acção nefasta dos hipermercados (marcas «brancas») para as sucessivas e destruidoras baixas nos preços à produção leiteira nacional.
As quotas leiteiras (ainda) eram uma garantia
de produção ou pelo menos uma garantia
do direito a produzir
Pese embora a controvérsia que sempre marcou a questão das quotas leiteiras (bem como das quotas de outros produtos), o facto é que a realidade moldada pela UE (como antes pela CEE) face aos interesses dos países grandes produtores/exportadores, trouxe a nossa quota leiteira para um plano de interesse nacional de soberania alimentar. Falamos da quota nacional perante a UE e depois (internamente) a distribuição da quota nacional pelos produtores individualmente considerados e a manutenção de uma dada quantidade na «reserva nacional», esta normalmente destinada a jovens e a outros novos candidatos a produtores.
Com o fim das quotas leiteiras, os países maiores produtores vão produzir ainda mais, e mais vão exportar, aliás como demonstra a experiência do pós-exame da PAC. Portugal, está sujeito a essa pressão e não fugirá à tendência se as condições hoje definidas se vierem a concretizar no essencial.
Ou seja, no contexto, a nossa quota leiteira era uma garantia à produção nacional e ao direito a produzirmos leite e lacticínios. Em relação aos países grandes produtores/exportadores, as respectivas quotas eram um freio. Com o fim das quotas leiteiras será a «lei da selva»…
Um questão se poderá pôr: mas então nós já estamos a produzir abaixo da quota que nos foi atribuída enquanto houve quotas. Então a nossa quota já era»virtual»… E, apesar de termos quota durante 24 anos, isso não impediu que dezenas de milhares de pequenos e médios produtores tivessem sido afastados da produção.
Em primeiro lugar, a nossa quota existia e até lá podíamos produzir dentro do sistema da PAC e das suas ajudas. Agora «quem tiver unhas é que toca viola» e não somos nós a tê-las…
E, principalmente, caso as políticas agrícolas – e de mercados – fossem outras, no sentido de apoiar mais e melhor os pequenos e médios produtores; caso os sucessivos governos tivessem defendido a sério o interesse nacional; caso não tivessem sido eliminados tantos milhares de produtores; Portugal teria uma produção leiteira estável e mais significativa. E não teríamos – como temos – o Sector Cooperativo Leiteiro e a Lactogal com os problemas que têm.
Portanto, defender a soberania alimentar nacional passa, incontornavelmente, pela defesa da produção leiteira. No imediato, é fundamental recuperar o sistema das quotas até porque os futuros «contratos» entre compradores e produtores não vão defender os preços à produção e antes pelo contrário. É que os produtores dos grandes países do centro e do Norte da Europa, com melhores condições para a produção e com apoios bastante mais significativos dos respectivos estados, agora que não têm qualquer limitação, poderão dar lugar ao aumento de produção com que sonham há muito, inundando o mercado de leite a preços muito mais baixos do que o produzido em Portugal.
Perante as más perspectivas, impõe-se uma mudança nas políticas agrícolas e de mercados e é indispensável um novo governo capaz de as definir e aplicar, apesar de todas as dificuldades.